Pesquisa analisa danos mentais e físicos causados por violência policial a famílias de vítimas: ‘A mãe morre todo dia porque não tem resposta do Estado’


Dados fazem parte de relatório final da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com parceria com a Universidade Harvard, dos Estados Unidos, e o Movimento Mães de Maio. Mães e mulheres são as mais atingidas. O estudo é do movimento Mães da Periferia de vítimas por violência policial do Ceará.
Reprodução
Como fica quem vê a violência policial acontecer tão perto? De maneira prematura, mães e mulheres, na maioria negras, e, principalmente, que vivem em regiões periféricas de cidades como São Paulo, veem suas vidas transformadas e atravessadas de maneira devastadora e profunda. São comuns relatos de ansiedade, sintomas de depressão e descoberta de doenças, como câncer.
“Começamos a perceber o que eram esses danos depois que a Vera Gonzaga morreu em 2018. Ali foi onde acendeu o alerta para todas nós”, contou Débora Maria da Silva em entrevista ao g1. Débora é uma das fundadoras do Mães de Maio, movimento criado após a série de crimes ocorridos naquele mês em 2006, quando mais de 400 civis foram mortos pela Polícia Militar em retaliação aos ataques do PCC contra os agentes de segurança.
É a partir da pergunta sobre o adoecimento feminino que a pesquisa “Vozes da dor, da luta e da resistência das mulheres/mães de vítimas da violência de Estado no Brasil” é lançada neste mês de julho em parceria com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf/Unifesp) e a Universidade Harvard, dos Estados Unidos.
Vera Lúcia Gonzaga era mãe, avó e sogra de três dessas vítimas da onda de crimes: a filha Ana Paula Gonzaga, o genro Eddie Joey de Oliveira e a neta, que Ana Paula gestava havia 9 meses, foram assassinados por um grupo de homens encapuzados em Santos, na Baixada Santista, em 15 de maio de 2006. De acordo com relatos da época, esses homens eram policiais e um dos tiros atingiu propositalmente a barriga de Ana Paula. Sem responsabilização dos culpados, Vera Lúcia passou a denunciar a violência policial e lutar por justiça ao lado das Mães de Maio.
Débora Silva e Vera Lúcia dos Santos
Arquivo Pessoal
No dia 3 de maio de 2018, Vera foi encontrada morta em casa ao lado de várias fotos de Ana Paula grávida e do genro. Uma das hipóteses levantadas na época foi suicídio por envenenamento.
“A marcha fúnebre tem cor, classe social e sexo”, apontou Débora Silva.
O cenário de assassinatos e a falta de resolução dos crimes geram adoecimentos e podem levar à morte, como o que aconteceu com Vera Lúcia. A partir dessa percepção, foi divulgado o relatório final do estudo entre as universidades e o movimento Mães de Maio.
O diferencial desse levantamento científico é a colaboração ativa das mulheres e mães durante toda a produção do material acadêmico como pesquisadoras sociais. “Posso até ter uma sensibilidade e simpatia, mas o jeito que somos treinados [na faculdade] para fazer as pesquisas acadêmicas reproduz uma relação de hierarquia entre pesquisador-objeto, entrevistador-entrevistado”, detalhou Yanilda González, pesquisadora que participou da elaboração do relatório final e professora-assistente da Harvard Kennedy School.
“Somos pesquisadoras, não somos objetos de pesquisa”, afirma Rute Fiuza. Ela é uma das responsáveis pelo levantamento e denuncia o desaparecimento do seu filho, Davi Fiúza, em uma ação da Polícia Militar da Bahia em 2014.
Da esq. para direita: Valéria de Oliveira (CAAF/Unifesp), Edna Carla Souza ( Mães da Periferia/CE), Aline Rocco (CAAF/Unifesp), Nívia Raposo (Movimento de Mães e familiares de vítimas letal do Estado Baixada Fluminense/RJ), Rute Santos (Mães de Maio do Nordeste/BA), Débora Silva (Movimento Independente Mães de Maio Baixada Santista/SP), Raiane Assumpção (CAAF/Unifesp) e Yanilda González (Universidade de Harvard)
Foto: Aílton Martins
As outras pesquisadoras sociais, ao lado de Rute Fiuza, são Edna Carla Souza, mãe de Álef Souza Cavalcante, uma das 11 vítimas da Chacina do Curió, no Ceará, Nivia Raposo, mãe de Rodrigo Tavares Raposo, morto por um policial militar que integrava uma milícia na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro e Débora Maria da Silva, mãe de Edson Rogério Silva dos Santos, uma das vítimas dos Crimes de Maio de 2006 em São Paulo.
O roteiro e qual seria o foco do relatório final vieram a partir de reuniões com cinco mães vítimas de violência policial que aconteceram a partir de 2006. As entrevistadas são de quatro estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Bahia.
Relatório
Trecho da apresentação da pesquisa apresentada pelas pesquisadoras sociais
Crédito: Aílton Martins
As pesquisadoras sociais detectaram que todas as mães e mulheres tinham ou estavam com crise de ansiedade, haviam descoberto algum tipo de câncer e/ou sinalizavam sintomas de depressão. Outro fato que foi semelhante em todos os casos é a investigação autônoma que as famílias realizaram após as mortes dos parentes. O sentimento de descaso por parte das autoridades foi unânime nesses relatos.
O g1 separou trechos de falas de pessoas que participaram da pesquisa. Os nomes serão preservados por questão de segurança.
Relatos de São Paulo
“Você ainda tem aquele fio de que eles vão achar. Daí você adoece mais ainda por não ter a resposta, porque se você tem uma resposta e pode punir – a perda já é uma tragédia horrível, mas quando você tem uma resposta e você pode punir já dá um alívio, ameniza. Mas nunca passa. E quando não tem a resposta, eu fico me perguntando: perdi o meu filho, essa pessoa está solta, está por aí vivendo, sorrindo e livre para matar mais jovens… Eu me sinto derrotada…o próprio Estado não concluir, não correr atrás, não ter feito nada… e quando me chamaram, muitas provas se perderam. Já tem a perda e essa não resposta do resultado que você não tem, de saber quem matou, te mata aos poucos, é muito doloroso.”
“A mãe é morta todos os dias porque não tem respostas do Estado. São sete anos. Sete anos que espero alguma audiência e até hoje nenhuma audiência teve. Tem mães que nunca tiveram audiência e quando a mãe fica sabendo, é arquivado o caso. É onde aquela mãe morre outra vez. Aquela mãe já estava morta. Ali, na hora do arquivamento, pode enterrar aquela mãe.”
Relato da Bahia
“Até hoje eu estou em busca de resposta do que aconteceu com ele, fui para todos os setores que vocês imaginarem e não obtive resposta, ia para a delegacia para ver se tinha alguma informação, se tinha alguma resposta, e nada. A única coisa que me diziam é que estavam investigando. Ministério Público, a mesma coisa. Procurava saber, ‘estamos investigando’. Quer dizer, 12 anos e está investigando, como que está investigando, como é que não tem uma resposta, um sinal sequer? É aquela coisa, eu sempre digo, penso e falo mesmo, somos pretos, pobre, morador de favela, poder aquisitivo não é alto. Se tivéssemos um poder aquisitivo alto, com certeza estavam, sim, investigando, estariam procurando, alguma coisa já teriam para dar resposta para a gente.”
Relato do Rio de Janeiro
“Não tenho expectativa [de Justiça] nenhuma. Eu não acredito na Justiça para as pessoas menos favorecidas, falo das pessoas que têm baixa renda, que não têm condições de pagar um bom advogado, que mora na Baixada [Fluminense], que os filhos estudam em escola pública porque são pobres e que são rotulados como os marginais, como bandido.”
Operação Escudo
Há um ano, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, anunciava o início da Operação Escudo, com o objetivo de capturar os responsáveis pela morte do soldado Patrick Reis, que atuava na equipe das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) durante uma ação na Baixada Santista, em São Paulo.
Nos 40 dias de operação, segundo divulgado pela pasta, 958 pessoas foram presas e 28 suspeitos morreram em supostos confrontos com policiais. O governo anunciou o fim da operação em 5 de setembro de 2023.
Desde o início, instituições e autoridades que defendem os direitos humanos pediam o fim da operação. O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) reuniu ao menos 11 relatos de violações em setembro do ano passado.
As mães e mulheres vítimas da violência policial na Operação Escudo já foram acolhidas pelo movimento Mães de Maio. Segundo Débora Silva, muitas ações de cuidados são fruto do que foi levantado e pautado nesse relatório publicado.
“Não vamos deixar as mães da Operação Escudo desamparadas. Isso é muito grave, é muito adoecedor”, completou Débora Silva.
Na terça (23), dois policiais militares das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) se tornaram réus por homicídio durante a Operação Escudo.
Ao todo, já são seis policiais militares réus. Em dezembro de 2023, os policiais Eduardo de Freitas Araújo e Augusto Vinícius Santos de Oliveira são acusados pelo assassinato de Rogério de Andrade Jesus. Em abril, foi a vez dos policiais militares Rafael Perestrelo Trogillo e Rubem Pinto. Segundo o Ministério Público, agentes sabiam que o homem estava desarmado e simularam apreensão de pistola.
Reparação
“A pesquisa confirma como as mães das vítimas em todo o Brasil estão se mobilizando para fazer valer seu direito à reparação pela morte de seus entes queridos”, aponta o último capítulo do relatório final. As pesquisadoras também recomendam que as políticas públicas garantam, entre pontos de acolhimento e reparação econômica, a garantia de que o que aconteceu, não se repita mais.
“O que eu acho é que a gente deveria ter, assim, uma ajuda do poder público… Eu mesmo, não tive notícia nenhuma, resultado nenhum do meu filho até hoje. Vai fazer 12 anos agora em maio, 12 anos neste ano […] Eu não tenho ninguém aqui, não tenho marido, sou sozinha e Deus, que corra atrás pra sobreviver, tive que largar meu trabalho para ir à procura em busca de uma resposta do meu filho”, contou uma mãe.
“Além de matar nossos filhos, o Estado nos mata”, finaliza Débora.
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