Por que bairros ‘chavistas’ lideram protestos que questionam vitória de Maduro


Milhares de venezuelanos saíram às ruas para protestar depois que o CNE confirmou a vitória de Nicolás Maduro na corrida presidencial, em meio a acusações de fraude feitas pela oposição. Protestos após reeleição de Maduro ser proclamada na Venezuela
Reuters/Samir Aponte
“Moro em um bairro popular de Caricuao [distrito de Caracas] e fiquei surpreso ao ver que as pessoas batiam em panelas e frigideiras. Isso simplesmente não acontecia antes”: esse é o relato de um jovem desempregado em Caracas, na Venezuela, que preferiu não revelar seu nome.
“Meu bairro sempre foi um setor fortemente chavista”, acrescenta ele.
Nas últimas horas, a capital venezuelana se tornou o epicentro de intensos protestos que abalam o país sul-americano após o anúncio de resultados eleitorais altamente contestados.
O bater de panelas surgiu espontaneamente e quebrou o silêncio que reinava na cidade, provavelmente como consequência de um resultado eleitoral inesperado.
Ao longo da segunda-feira (29), os panelaços dispararam em diferentes áreas de Caracas. Mas poucos previram que esses barulhos seriam ouvidos com maior intensidade nos bairros populares da capital, muitos dos quais costumavam ser bastiões do movimento chavista.
De Catia a Petare — uma das regiões mais populosas da América Latina — passando por La Vega e El Cementerio, o barulho em algumas áreas era ensurdecedor.
O protesto não parou por aí. Também de forma espontânea, as pessoas começaram a sair às ruas, algumas com as panelas nas mãos.
Enquanto os líderes da oposição permaneciam em silêncio, as ruas de Caracas esquentavam aos poucos.
“Esta marcha é do bairro Petare, não há partido político aqui, não temos nenhum partido que nos dê alguma coisa. Saímos porque essa fraude deve ser interrompida. Este governo tem que sair”, diz María Vázquez, uma dona de casa de 60 anos, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
A emblemática Plaza Altamira, na zona leste da cidade, voltou a ser o ponto de encontro da oposição.
Centenas de moradores das redondezas e pessoas de outros setores populares de Caracas e arredores — alguns viajaram das cidades satélites de Guarenas e Guatire para protestar — reuniram-se ali enquanto agitavam bandeiras e gritavam: “O povo unido nunca será derrotado” e “Este governo vai cair”.
Manifestantes contrários ao anúncio de vitória de Maduro na eleição da Venezuela protestam nas ruas de Caracas
Yuri Cortez/AFP
‘Não queremos auxílios’
Jonathan diz que saiu de Maca de Petare para Altamira para “defender o voto”. Este homem de 39 anos, natural de Caracas, afirma que a motivação da “população do bairro” para sair e protestar tem a ver com o cansaço de ser maltratado.
“Não queremos auxílios [de comida], nem nada do governo. Deixe-os tirar todos os nossos benefícios se quiserem. Aqui as pessoas estão com raiva. Eles queriam os bairros nas ruas? Bem, estamos todos aqui fora”, diz ele.
Os protestos não se limitaram a Altamira. Nos bairros Catia, na zona oeste da cidade, José Félix Ribas de Petare (na zona leste) e El Valle (na zona sul), manifestantes derrubaram faixas de propaganda eleitoral do presidente, enquanto outros grupos ocupavam as ruas do centro da capital em locais próximos da Assembleia Nacional e do Palácio Miraflores, sede do governo.
Muitos diziam que pretendiam chegar lá para “tirar” Maduro. Em um vídeo que circulou nas redes sociais, verificado pela BBC News Mundo, um grupo de pessoas derrubou uma estátua do ex-presidente Hugo Chávez na cidade de Coro, capital do estado de Falcón, no noroeste da Venezuela.
‘Eles estão descendo das colinas novamente’
Alejandro Velasco, historiador da Universidade de Nova York, nos EUA, e autor do livro “Barrio Rising: Urban Popular Politics and the Making of Modern Venezuela” – “A Ascensão do Bairro: Política Popular Urbana e a Construção da Venezuela Moderna”, em tradução livre -, afirma que o que está acontecendo agora na Venezuela não ocorria há décadas.
No entanto, ele levanta a hipótese de que uma eventual mudança de governo do país sul-americano não acontecerá de forma instantânea, mas, sim, gradual.
“O Caracaço [saída da população às ruas na Venezuela, em grandes proporções, em 1989], quando os bairros se manifestaram, foi o que deu o golpe final no Puntofijismo [sistema bipartidário que governava o país]. O golpe final formal só veio em 1998, quando Chávez foi eleito, mas [o sistema] já estava mortalmente ferido no Caracaço”, afirmou Velasco em entrevista à BBC Mundo em 2017.
Agora, o pesquisador acredita que a cidade é abalada pela força popular que vem das colinas. “Os bairros chegaram hoje a Caracas, não há dúvidas disso”, disse ele à BBC Mundo.
Velasco afirma que o grande desafio dos líderes da oposição na Venezuela sempre foi unir os setores populares com a oposição mais tradicional. Segundo ele, sempre foi difícil para as pessoas dos bairros identificarem-se com estes políticos.
“Acho que agora finalmente vemos aquele momento de unidade e reencontro”, avalia ele.
‘O bairro não vai se intimidar’
Para Velasco, um dos fatores que impulsionaram essa união foi a grande expectativa criada pela possibilidade de o país tomar um rumo diferente, liderado por um novo governo. Outro fator importante foi a crise.
“Embora a economia tenha melhorado um pouco em relação aos anos anteriores, essa melhoria não atingiu os setores populares. Se você não tiver um familiar que mora no exterior e consiga enviar remessas ou se você não tiver acesso ao pouco que resta do Estado de bem-estar social, a única coisa que se pode fazer é viver de empréstimos e favores. Isso afeta muito os setores mais pobres. O chavismo contava com a recuperação econômica para salvá-los, mas a realidade é que isso não é percebido nem no interior do país, nem nos bairros pobres”, explica o pesquisador.
Velasco acredita que as dificuldades aumentaram ainda mais para o governo agora que os bairros aderiram ao movimento de oposição: “As pessoas dos bairros não se intimidam tão facilmente.”
‘Eles tiraram nossa dignidade’
Outro jovem de Petare, em Altamira, garantiu que os moradores dos bairros não têm absolutamente nada a perder.
“Eles tiraram nossa dignidade. Não tenho [dinheiro] para comprar comida para minha filha. Olhe meus sapatos, estão furados e não tenho como comprar novos.”
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) declarou Maduro vencedor no domingo com 51,2% dos votos, ante 44,2% do candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, após 80% das atas eleitorais computadas.
No entanto, González rejeitou o resultado junto com a líder da oposição, María Corina Machado, que foi eleita pré-candidata nas primárias, mas foi desqualificada para concorrer no pleito realizado no domingo (28).
“Há um novo presidente eleito e é Edmundo González. Todos sabem disso”, disse Machado no domingo à noite, depois de argumentar que a sua contagem refletia 70% dos votos para González e 30% para Maduro.
Maria Corina Machado e Edmundo González declaram vitória na eleição da Venezuela
Maxwell Briceno/Reuters
Expressões espontâneas
Líderes da oposição dirigiram-se ao povo venezuelano depois das 18h de segunda-feira, no horário local. Eles disseram ter provas de mais de 73% das atas que dariam a vitória a González Urrutia.
Machado também falou sobre os protestos que acontecem em todo o país.
“São expressões espontâneas de setores populares. Expressões legítimas. Quero convidar você a nos conhecer. Amanhã vamos nos reunir em assembleias populares por todo o país”, apelou ela.
Machado acrescentou que o governo “quer gerar violência” e apelou aos apoiadores para que permaneçam “de forma ordeira e civilizada, mas muito firmes”.
O governo de Nicolás Maduro respondeu aos protestos com repressão. Ao cair da noite, várias partes da cidade cheiravam a gás lacrimogêneo. Tiros podiam ser ouvidos em diversas áreas.
A maioria dos manifestantes se dispersou e voltou para casa, mas outros permaneceram em resposta às autoridades. Alguns montaram barricadas em vários setores e se defenderam com o que puderam, geralmente com pedras e paus.
“É uma situação difícil, porque não temos armas como eles”, disse um manifestante.
Katiusca Justo, outra jovem de 31 anos de Petareña, foi afetada pelo gás lacrimogêneo e decidiu voltar para casa.
“Saímos em paz e o que eles fizeram foi nos reprimir, mas eu não esperava menos. Eu sabia que provavelmente haveria repressão e pelo menos gás lacrimogêneo.”
Embora tenha decidido descansar, planeja retornar “amanhã e quantos dias forem necessários até a queda deste governo”.
“Estou cansada desta ditadura. Passei seis anos fora do meu país para ajudar minha família. Mas voltei de Bogotá e agora quero uma vida melhor aqui na Venezuela”, acrescenta ela.
Após o lançamento de diversas bombas de gás lacrimogêneo em Altamira, o protesto se dispersou, mas logo as panelas e frigideiras voltaram a soar nas varandas dos prédios da região.
Enquanto a calma voltava a reinar em Altamira, em outras áreas de Caracas o conflito persistia, com objetos queimados em alguns setores e forças policiais preparadas para extinguir os protestos restantes.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.