Comédias românticas se renovam com casais ‘mais reais’ e indicam fim da crise do estilo


Neste 2º semestre, ‘Ninguém Quer’ e ‘Amor da Minha Vida’ chamaram atenção. Criador da série estrelada por Bruna Marquezine e outros especialistas analisam nova safra do estilo. Bruna Marquezine e Sérgio Malheiros na série ‘Amor da Minha Vida’
Divulgação/Disney+
O segundo semestre de 2024 trouxe duas ótimas séries com muito em comum. “Amor da Minha Vida” e “Ninguém Quer” mostraram a força das comédias românticas, um gênero que ensaia uma renovação nos últimos anos, após viver uma crise. Queridinhos da crítica, os dois seriados ficaram na parte alta das listas dos mais vistos de suas plataformas.
Mas será que o mundo precisa de mais comédias românticas? E as plataformas de streaming podem ser vistas como uma salvação para esse combalido (e querido) gênero? Para ir atrás dessas e de outras respostas, o g1 conversou com especialistas e fãs do estilo.
“A comédia romântica sempre fracassa quando é tratada como um gênero menor. A lógica é a mesma de uma canção de amor. Parece fácil na teoria, qualquer um sabe falar ‘eu te amo’ e tocar dois ou três acordes. E por isso existem tantas”, compara Matheus Souza, criador de “Amor da Minha Vida”, estrelada por Bruna Marquezine.
“Mas a gente sente algo diferente (e talvez inexplicável) quando a canção é escrita com verdade e por um artista com voz original. Uma canção de amor da Marília Mendonça, da Taylor Swift, do Chico Buarque… Claro, alguém pode não gostar. Mas é diferente. E é essa diferença que emociona.”
Na série de Matheus, você vê pessoas de vinte e tantos anos entre relações, traições e sofrências. No meio dessa bagunça emocional, a trama passa por temas como monogamia, sexualidade, vocação profissional, influencers e sonhos de padaria.
“Boa parte dos executivos de streamings tomam decisões a partir de algoritmos, pesquisas, dados… Eu passei por lugares apresentando ideias de comédias românticas. Todos os streamings diziam que não era o que o público estava querendo. E como a gente explica o sucesso da série? Eu posso ser um romântico, um idealista… Mas continuo achando que um artista será melhor em traduzir os sentimentos do mundo do que qualquer algoritmo.”
‘Amor da minha vida’: assista ao trailer
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“O público da comédia romântica dos anos 90 e 2000 amadureceu. E a sociedade toda amadureceu. O feminismo avançou. O diálogo sobre relacionamentos abusivos avançou. Agora as mulheres estão em busca de relacionamentos mais saudáveis”, pondera Verônica Debom, atriz de comédias como “O Clube das Mulheres de Negócios”, “Body by Beth” e “Tá no Ar: A TV na TV”.
Diretor, roteirista e eventual ator, Matheus tem mais de 15 anos dedicados às comédias românticas, embora se dedique a outros gêneros. Ele surgiu com o filme “Apenas o Fim”. Tinha 19 anos e era estudante da PUC-RJ quando começou o projeto, com Gregório Duvivier e Erika Mader discutindo a relação por uma hora e 20 minutos enquanto andavam pela faculdade do Rio.
O cineasta de 36 anos consolidou a carreira dirigindo filmes voltados para adolescentes e jovens adultos (“Ana e Vitória”, “Me Sinto Bem Com Você”, “A Última Festa”, “Tá Escrito”). Também escreveu roteiros como o do longa legionário “Eduardo e Mônica”, da missisérie acachapante “Onde está meu coração” e do programa “Amor & Sexo”.
Para ele, uma série ou filme se torna clássico quando tem “uma marca do autor e identidade no texto”. “As comédias românticas que marcam gerações passam pelo casamento criativo de um bom roteirista com as pessoas perfeitas para o estilo do texto. No meu caso, tive a sorte de encontrar a Bruna Marquezine e ela ser perfeita para o tipo de personagem e diálogos que gosto de escrever. Ela virou não apenas uma das minhas melhores amigas, mas uma das maiores defensoras do meu texto, da minha visão.”
Mas existe um porém: não é porque uma voz é marcante que ela nunca vai cansar o público. “Nos anos 2000, toda comédia americana estava dominada pela voz do Judd Apatow (e seus discípulos de vozes parecidas, como o Seth Rogen). Eu adoro eles, mas era um estilo de comédia dominante que saturou”, exemplifica Matheus.
O diretor defende que o estilo “precisava de novos autores”. Ele cita Phoebe Waller-Bridge (“Fleabag”) e Aziz Ansari (“Master of None”) como responsáveis pelo começo da renovação. “Outras séries excelentes foram produzidas nos últimos anos, mas com pouco investimento de produção e divulgação: ‘The Bisexual’, ‘Starstruck’, ‘Work in Progress’, ‘Trigonometry’…”, enumera.
Adam Brody e Kristen Bell na série ‘Ninguém quer’
Divulgação/Netflix
“Ninguém Quer” tem uma voz diferente. É a primeira série criada por Erin Foster, atriz pouco requisitada e filha do cantor David Foster. Virou um hit instantâneo também por conta dos atores, é claro. O elenco é liderado por Kristen Bell (“The Good Place”) e Adam Brody (“The O.C.”). A história do início da relação entre um rabino e uma podcaster de sexo tem encontros e desencontros que parecem reais.
“É um romance mais próximo da realidade e de uma realidade saudável, com dramas do cotidiano e sem grandes acontecimentos, apostas ou decepções”, resume Verônica, que também escreve roteiros, como o do filme “Minha Irmã e Eu” e da série “Diário de um confinado”.
Esse é, justamente, um dos muitos trunfos da série criada por Matheus: “Uma das mensagens que mais recebo no Instagram é o quanto os diálogos têm a minha cara, o quanto que dá pra me ver em ‘Amor da Minha Vida’.”
Para René França, cineasta e professor de cinema, as duas séries unem elenco carismático, fórmulas básicas bem aplicadas e diálogos inspirados: “A receita parece simples, mas é fácil de desandar. Você assiste e se sente bem. Quando é bem feito provoca uma sensação parecida com a de comer sua comida preferida. E a gente costuma se dar esse tipo de auto-agrado num momento de carência ou estresse.”
‘Ninguém quer’: assista ao trailer da série
Mari Bianchini, influenciadora e youtuber de cultura pop, concorda que existe “uma nova leva de investimento em comédias românticas”. “As duas séries mostram personagens imperfeitos lidando com situações imperfeitas, o que causa muita identificação. São produções que fazem o público torcer pelos casais. Na nossa vida, a gente busca encontrar a pessoa certa também”.
“No streaming a comédia está sendo reciclada, tentando criar narrativas com a ideia de desafios nos relacionamentos de uma forma um pouco mais madura e com obstáculos mais realistas”, opina Daniel Oliveira, crítico e pesquisador de audiovisual. “Isso é importante para que as pessoas se identifiquem com aquilo que estão vendo, mas com problemas tratados de forma cômica para que as pessoas possam rir e não se sentirem mais angustiadas com a vida.”
Além de todos esses requisitos, o DNA das boas produções do estilo costuma ter um tal de “meet-cute”. A expressão em inglês diz respeito ao encontro fofinho entre o casal de protagonistas, geralmente em circunstâncias cômicas e incomuns. Nesse quesito, é difícil superar outra nova série do gênero, ainda inédita no Brasil. Na australiana “Colin From Accounts”, os protagonistas se conhecem durante o atropelamento de um cachorro.
Criada e estrelada pelo casal Patrick Brammall e Harriet Dyer, “Colin From Accounts” tem causado certo burburinho. Os sites que agregam reviews não mentem: a série contabiliza nota 100 no Rotten Tomatoes e 85 no Metacritic. A diferença de doze anos de idade entre os protagonistas gera a maior parte dos conflitos do novo casal. As tretas geracionais não são forçadas e os episódios são ao mesmo tempo engraçados e complexos.
Elenco da série australiana ‘Colin from Accounts’
Divulgação/Paramount+
Comédia romântica, a origem
Cineasta, escritor e professor, Renné apresenta e produz com a jornalista Sílvia Amélia o podcast “1999 – O Grande Ano do Cinema”. Foram 12 meses cruciais para o cinema em geral e para as comédias românticas: “Um Lugar Chamado Notting Hill” e “10 Coisas que Odeio em Você”, por exemplo, são desta safra.
O filme estrelado por Heath Ledger e Julia Stiles é levemente baseado em “A Megera Domada”, comédia teatral de Shakespeare. “As Patricinhas de Beverly Hills” (1995), por sua vez, toma emprestada parte da história de “Emma” (1816), livro da inglesa Jane Austen. A comédia romântica de maior bilheteria de todos os tempos, “Uma Linda Mulher” (1990), foi inspirada na premissa da peça “Pigmalião”, escrita em 1913 pelo irlandês George Bernard Shaw.
“A comédia romântica tem origem no teatro europeu”, contextualiza Renné. “Tanto em Shakespeare, mas principalmente na commedia dell’arte italiana, com Pierrot, Colombina e Arlequim. As relações desse trio vão influenciar tudo que vem depois no gênero. Vem daí uma fórmula que vai ser usada nas operetas europeias: um casal separado por um vilão e um coadjuvante palhaço que vai, através de trapalhadas, ajudar o casal a ficar junto de novo.”
O alemão Ernst Lubitsch (1892-1947) estabeleceu o subgênero no cinema. “Ele usa a estrutura das operetas, mas com excelentes diálogos, de forma que o casal principal parece ser mais inteligente e sofisticado. Ele coloca o coadjuvante palhaço como um amigo (muitas vezes excêntrico), mas o casal é quem resolve sua crise”, descreve Renné. “Foi criado, então, o modelo que vai dar origem ao filme que é o parâmetro das comédias românticas: ‘Aconteceu Naquela Noite’, de 1934, dirigido por Frank Capra e o primeiro a ganhar os cinco principais Oscars.”
Guia do streaming: Melhores comédias românticas dos anos 90
O último filme do estilo a triunfar em premiações foi “Shakespeare Apaixonado”. Ganhou sete estatuetas do Oscar em 1999, incluindo Melhor Filme e Melhor Atriz. Foi quando Gwyneth Paltrow impediu Fernanda Montenegro de levar o prêmio por “Central do Brasil”.
Dois anos antes, “Melhor é Impossível” se tornou o último filme de qualquer estilo a levar o Oscar de Ator e Atriz, com Jack Nicholson e Helen Hunt. Uma comédia romântica havia sido destaque no Oscar em 1978. “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, de Woody Allen, levou quatro dos principais prêmios.
Esses três filmes, no entanto, não estão no top 5 de mais vistos do estilo no cinema em todo mundo. “Uma Linda Mulher” (1990), “Casamento Grego” (2002), “Do Que as Mulheres Gostam” (2000), “Hitch, Conselheiro Amoroso” (2005) e “Um Lugar Chamado Notting Hill” (1999) são os campeões de bilheteria deste gênero em todos os tempos. O top 10 tem mais dois filmes de Julia Roberts (“O Casamento do Meu Melhor Amigo” e “Noiva em Fuga”). Outra constatação básica é que os anos 90 e 2000 foram o auge comercial do gênero.
Hugh Grant e Julia Robets em ‘Um lugar chamado Notting Hill’
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Poucos filmes recentes foram megahits nos cinemas. “As Travessuras de Uma Sereia” (2016) e “The ex-file 3” (2017) estão na lista de mais vistos da história da China. Dentre os falados em inglês, nos últimos anos, “Podres de Ricos” (2018) e “Todos Menos Você” (2023) são os únicos no top 30 histórico. Outros sucessos recentes são “Ingresso para o Paraíso” (mais um com Julia Roberts), “O Bebê de Bridget Jones” (o terceiro da franquia no top 50) e “Yesterday”.
O longa sobre um cara que parece ser o único que conhece as músicas dos Beatles foi roteirizado por Richard Curtis, responsável por clássicos como “Simplesmente Amor”, “Quatro Casamentos e um Funeral” e “Um Lugar Chamado Notting Hill”. Neste filme, não há um vilão para separar o casal: o antagonista é a fama. “É uma excelente atualização, porque pegou uma época de fascínio pelas celebridades”, relembra Renné. “É um antagonismo insolúvel: não dá para deixar de ser famosa. É a mesmíssima fórmula, tem até o palhaço colega de casa dele, o tipo exótico coadjuvante.”
Com tantas fórmulas repetidas, é natural que nos lembremos mais de cenas do que da trama desses filmes. “Pense no orgasmo em ‘Harry e Sally’. A originalidade surge de situações específicas marcantes dentro de uma estrutura que é meio rígida”, define o professor.
Meg Ryan e Billy Crystal na famosa cena do orgasmo fake de ‘Harry e Sally: Feitos um para o Outro”
Divulgação
Por outro lado, situações “clássicas” comuns no passado estão sumindo ou sendo atualizadas. Uma das séries lançadas neste ano tem uma cena em que um homem faz um pedido de casamento surpresa no meio de uma festa de noivado de outras pessoas. O ato provoca uma crise no casal protagonista. Em um passado recente, esse pedido seria o auge da fofura.
“Clichês como o homem que persegue a mulher até conquistá-la ou beijos roubados deixam de fazer sentido numa sociedade mais igualitária ou pelo menos com mais consciência de gênero. Mas o romance é algo que continua fazendo sentido e como diria o poeta ‘todas as cartas de amor são ridículas’, então alguns clichês sempre serão bem-vindos”, argumenta Verônica.
O fim de uma crise?
Todos os especialistas ouvidos pelo g1 concordam: a crise da comédia romântica é a crise dos filmes mais nichados, feitos para um público mais específico. “É um reflexo do que a indústria do cinema acabou impulsionando nos últimos anos”, resume Mari. “Tivemos um boom nas produções de super-heróis e outros gêneros não tiveram muito espaço, não foram valorizados pelas produtoras nos últimos anos e acabaram indo para o streaming.”
A youtuber cita ainda dois fatores que mostram o investimento das plataformas neste estilo. “Temos a volta dos filmes de Natal, que era uma coisa muito forte na TV dos Estados Unidos. E as adaptações de livros que estão em produção. Eu sou muito fã da Emily Henry, porque ela escreve comédias românticas muito boas. Cinco livros dela que eu amo vão ser adaptados.” A best-seller americana de 33 anos escreveu “Leitura de Verão”, “De férias com Você”, “Nem te conto” e outros.
A autora Emily Henry
Divulgação/Instagram da escritora
“Ainda há espaço para terror que tem um público cativo, mas o filme médio, que nem é o mega blockbuster e nem o independente, parece ter migrado para o streaming”, analisa Renné.
“O preço do ingresso é caro e, na mente do público, um filme de ‘menor espetáculo’ pode ser visto em casa, nos streamings. O ato de pagar ingresso para assistir um filme ficou reservado para os longas mais grandiosos, de efeitos especiais, filmes-evento”, resume Matheus. “A queda no gênero também passou por executivos sem senso de humor, diretores sem paixão e talento para comédia, artistas que consideram um gênero menor.”
Fãs do estilo já devem ter percebido outra coisa: é mais raro encontrar personagens adultos imaturos. “Acho difícil assistir dois personagens de 30 e muitos, 40 e poucos anos, se comportando como adolescentes”, atesta Daniel.
“A gente está mais cínico e não consegue ver o Matthew McConaughey e a Kate Hudson não sendo adultos. Em ‘Como Perder um Homem em 10 Dias’, fica claro que se eles se sentarem e conversarem, não teria empecilho algum para eles ficarem juntos.”
Além de adultos se comportando como adultos, investir em narrativas mais longas também parece ser uma boa saída para revigorar as comédias românticas. “As séries permitem analisar o que acontece depois daquele ‘e viveram felizes para sempre’. Elas enxergam que existem desafios também de se estar em um relacionamento e mantê-lo”, explica Daniel. O crítico diz que hoje os roteiristas não se limitam em retratar as adversidades que duas pessoas passam para ficarem juntos. As histórias de amor não são todas como a de Ross e Rachel, em “Friends”.
“Seria mais interessante olhar os desafios do Ross e da Rachel vivendo juntos no final. Os desafios de estar em uma relação são difíceis, são obstáculos diários. Hoje, as séries permitem explorar isso melhor”, analisa Daniel.
Ross (David Schwimmer) e Rachel (Jennifer Aniston) em ‘Friends’
Divulgação/Warner
Outra boa estratégia para dar novo fôlego ao estilo é tirar as histórias dos “espaços de privilégio”, define o pesquisador. Os roteiros são potencializados quando focam em “pessoas que parecem ter problemas reais”. Para Daniel, um bom exemplo disso é o filme “O dia que te conheci”, da produtora mineira Filmes de Plástico, a mesma de “Marte Um”.
Faz sentido que estejamos assistindo histórias “mais reais”, mas algumas convenções ainda são seguidas, é claro. “É parte da previsibilidade da forma que atrai as pessoas, porque elas sabem o que vai acontecer. Os filmes e séries que são bem-sucedidos na execução dessas fórmulas entregam para as pessoas o que elas esperam, mas com um certo tempero, como se você nunca tivesse visto aquilo feito daquela forma”, diz Daniel.
“A comédia romântica nunca vai morrer, porque o mais caro talvez seja o cachê dos atores. Então, é um conteúdo barato e escapista. A grande comédia romântica depende muito do carisma do casal de atores principais. Existe uma química entre os personagens centrais. O público precisa desejar aquelas pessoas e se identificar com aquelas pessoas: ‘Eu me identifico com esse casal, mas ao mesmo tempo eles são uma versão melhorada de mim’. O gênero é aspiracional”, adjetiva o crítico.
Para Verônica, esta nova onda do estilo também “representa mais mulheres diversas com gostos e reflexões diferentes”. “Para fisgar a atenção da mulher moderna, os roteiristas tem que dar mais cores a essas personagens e suas individualidades… e são muitas comedias românticas com a protagonista 40+, que reflete um lugar de nostalgia. As mulheres que viam as comêdias românticas nos anos 90 e 2000 agora, mais bem resolvidas, voltam a curtir o gênero. É meu caso, pelo menos”, ela conclui, rindo.
Comédias românticas dos últimos 10 anos
Divulgação
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